Abandono do Brasil ao pacto migratório é uma vergonha internacional

O abandono do Brasil do Pacto de Migração da ONU, por decisão do governo de Jair Bolsonaro, provocará, sem dúvida, um dano de imagem ao País internacionalmente e indica para a “incivilidade, a desumanidade e a frialdade no trato dos migrantes, ou seja, puro barbarismo, já que contribui com a xenofobia embalada nos discursos de extrema direita”. A avaliação é da jurista Carol Proner, doutora em Direito Internacional, professora da UFRJ e membro fundadora da ABJD, em entrevista ao 247. Carol Proner também é integrante do Conselho Editorial do Brasil 247.

“O que o governo Bolsonaro indica, com o abandono de mais esse compromisso em matéria de direitos humanos, é a incivilidade, a desumanidade e a frialdade no trato dos migrantes, ou seja, puro barbarismo, já que contribui com a xenofobia embalada nos discursos de extrema direita”, diz ela, para quem a decisão chega a ser contraditória, uma vez que “o número de brasileiros que vivem fora é quase o dobro ou até o triplo dos migrantes acolhidos”.

A jurista também lembra que, diferente de outros países que recuaram ao pacto, como Hungria, Polônia e Áustria, o que ela também considera “lamentável:, o Brasil, “com uma população de apenas 750 mil migrantes vivendo no território brasileiro, num universo de 200 milhões, isso representa 0,4% do contingente populacional do país, segundo dados da Polícia Federal, o que torna essa decisão, no mínimo, pretensiosa, ao supor que o Brasil possa impactar a já calamitosa situação global”.

Confira a íntegra da entrevista:

Na sua avaliação, o que o governo federal indica quando se recusa a participar desse pacto?

Entre ditos e desditos de um governo que assombra pela capacidade de produzir factoides by Twitter, está realmente confirmada a notícia de que o Brasil abandonou o Pacto de Migração, tecnicamente chamado de Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM). Soubemos do envio de telegramas, emitidos pelo Ministério das Relações Exteriores, nos quais a chancelaria teria solicitado aos diplomatas e às missões do Brasil que informassem o desligamento aos órgãos internacionais relevantes, ao Secretário-Geral da ONU e ao Diretor-Geral da Organização Internacional de Migração.

A decisão, para além de lamentável do ponto de vista da (falta de) civilidade, é mais um vexame internacional daqueles inexplicáveis, ou que só se justifica dentro de uma lógica profundamente subalterna. E pouco modesta, aliás, pois sequer o Brasil é país prioritário para fluxos migratórios.

É também ilógico esse recuo porque o Pacto Global não é um tratado internacional, mas um acordo intergovernamental para melhorar a administração dos problemas migratórios do planeta. Como tal, não vincula, não gera sanções por descumprimento, não cria novos direitos e nem submete ou condiciona o desenvolvimento de políticas autônomas e soberanas.

O que o governo Bolsonaro indica, com o abandono de mais esse compromisso em matéria de direitos humanos, é a incivilidade, a desumanidade e a frialdade no trato dos migrantes, ou seja, puro barbarismo, já que contribui com a xenofobia embalada nos discursos de extrema direita.

Qual a importância do Pacto Global e o que ele exige de cada país?

O antecedente próximo desse Pacto é um consenso alcançado em 2016, na “Declaração de Nova York para Refugiados e Migrantes”, momento em que o mundo admite que o aumento das migrações é um problema de ordem global, que exige cooperação entre todas as nações. Desde abril de 2017, por meio de Resolução adotada pela Assembleia Geral na ONU, foram definidas as modalidades e o prazo para assinar o Pacto Global. Todos os países, exceto os Estados Unidos, participaram das negociações que resultaram na adesão, até o momento, de dois terços dos membros (164 dos 193 países membros das Nações Unidas).

Mesmo não-vinculante, no sentido hard law, o Pacto é um compromisso cooperativo politicamente válido, que compreende a migração e o tráfico de pessoas como fenômenos incidentais, um círculo vicioso que só faz crescer o número de vítimas em condição de absoluta vulnerabilidade. O documento prevê, como objetivos centrais, o desenvol vimento de sistemas de informação sobre a migração internacional, justamente para minimizar fatores que obriguem as pessoas a deixarem seus países e, por consequência, encontrar alternativas para reduzir as vulnerabilidades e combater o contrabando e o tráfico de pessoas.

Em suma, o Pacto Global prevê o reforço de medidas já tratadas em outros documentos convencionais, no âmbito da ONU e dos sistemas regionais, como o clássico princípio non refoulement(princípio da não devolução), entendido como um imperativo do direito internacional (jus cogens). O Pacto define que o migrante não pode ser devolvido/deportado im ediatamente e que cada caso deve ser analisado individualmente. Também prevê que o migrante terá direito a documento de identificação e que a detenção deve ser o último recurso e, quando necessária, deverá ser a mais curta possível. O documento reforça previsões do Estatuto dos Refugiados, o acesso à justiça, aos direitos humanitários básicos, como saúde, condições de vida, educação e informação e reafirma o óbvio humanitário: estão proibidas as deportações coletivas e a discriminação de qualquer natureza como critério de permanência.

A nova Lei de Migração brasileira, sancionada em maio de 2017, está em total consonância com o conteúdo do Pacto Global, tratando o movimento migratório como um direito humano e um drama contemporâneo, combatendo a xenofobia e a discriminação. Portanto, a decisão do governo Bolsonaro fere a tradição brasileira, de país acolhedor, miscigenado e inter cultural e opta pela adulação aos governos ultradireitistas do planeta.

Para deixar o Pacto Global de Migração, o presidente Jair Bolsonaro argumenta que o Brasil é soberano para decidir sobre o tema. O Pacto fere, de alguma forma, a soberania dos países?

Deixemos essa resposta para um insuspeito, aos olhos da direita, o ex-chanceler do governo Temer, Aloysio Nunes Ferreira, para quem o Pacto “busca apenas servir de referência para o ordenamento dos fluxos migratórios, sem a menor interferência com a definição soberana por cada país de sua política migratória”.

Sabemos que a reação de outros países ao Pacto Global tem relação direta com os graves problemas migratórios que vivem os europeus. Entre os países dissidentes, numa reviravolta nos últimos meses de negociação, estão a Hungria, a Polônia, a República Tcheca, a Eslováquia e a Áustria. Também se posicionaram contra a Bulgá ria, a Suíça, a Austrália e a Itália. Considero esse recuo lamentável, inaceitável, mas compreensível, já que o tema ocupa sobejamente a agenda política desses países. Mas o Brasil? Com uma população de apenas 750 mil migrantes vivendo no território brasileiro, num universo de 200 milhões, isso representa 0,4% do contingente populacional do país, segundo dados da Polícia Federal, o que torna essa decisão, no mínimo, pretensiosa, ao supor que o Brasil possa impactar a já calamitosa situação global. Além de imodestos, fomos insolidários.

A medida pode afetar brasileiros que vivem no exterior? Ou a imagem do Brasil internacionalmente?

Isso é o mais contraditório. O número de brasileiros que vivem fora é quase o dobro ou até o triplo a depender do medidor, dos migrantes acolhidos. Segundo dados Relatório Internacional de Migração do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Secretaria das Nações Unidas (Desa), em 2017 havia em torno de 1,6 milhão de brasileiros no exterior. Já o Ministério das Relações Exteriores (MRE) registrou, em 2016, mais de 3 milhões de brasileiros fora, dos quais 750 mil somente na Europa.

Não é possível afirmar que a decisão abrupta do governo brasileiro possa afetar diretamente essas pessoas, já que depende de cada país, soberanamente, construir critérios de política migratória. Mas não há dúvida que provocará novo dano de imagem, alimentando o já crescente imaginário simbólico de hostilidade, de falta de reciprocidade em relação aos demais países, de descompromisso com os direitos humanos. Já é inseparável do Bolsonaro et caverna essa pecha de ultradireita tosca e desinformada, agravada por episódios como a negativa do Brasil em sediar a Conferência do Clima da ONU, ou as ameaças de sair do Acordo de Paris.

É triste perceber como esse tipo de atitude irrefletida pode reverter as conquistas dos últimos anos, mesmo quando o Brasil, visto pelo número de expatriados em comparação aos acolhidos, desfruta em dobro do direito de emigrar.

FONTE: 274

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JORGE RORIZ