Foliões na política

EDITORIAL DA FOLHA DE SÃO PAULO.

Enquanto os festejos do Carnaval tomam as cidades brasileiras, renova-se a esperança de que a folia que deu o tom da política nacional nos últimos dias não sobreviva à Quarta-Feira de Cinzas.

Dissipou-se muita energia e flertou-se com aventuras perigosas e até desastres durante a algazarra.
No Ceará, um senador foi baleado ao acometer-se numa retroescavadeira contra policiais amotinados que aterrorizam a população. Em Minas, dos cofres vazios, o governador concedeu aumento de 42% à polícia, e a Assembleia terminou de contemplar o restante do funcionalismo com reajustes salariais.

O presidente da República fez bravata com combustíveis, provocou governadores e ofendeu jornalistas. Um general que o aconselha acusou o Congresso de chantagear o Executivo, o que estimula protestos de rua contra o Legislativo.

A família presidencial abraçou com fervor a causa de um miliciano morto pela polícia, com direito a divulgação de notícias falsas. O ministro da Economia referiu-se a servidores e a empregadas domésticas de maneira depreciativa.

Há coincidência na concentração desses fatos no tempo, mas existe também, a conectá-los, um déficit de responsabilidade e espírito público de autoridades e servidores incumbidos de funções cruciais para a estabilidade, sem a qual nenhuma administração prospera.

No sistema da Carta de 1988, esse papel cabe preponderantemente ao presidente da República. A arquitetura constitucional fez convergir nele os estímulos e os recursos para que se comporte com racionalidade, moderação e responsabilidade, acima de divisões menores da sociedade e da política.

A Presidência, porém, veio perdendo atribuições conforme outros atores institucionais, como o Congresso, foram ganhando importância. Além disso, ocorreu o acidente histórico de ter sido eleito Jair Bolsonaro, que despreza qualquer tipo de mediação e age tomado de um facciosismo rudimentar.

A resultante de um presidente que não assume o papel de coordenador da política nacional e atua como agitador de nichos é compatível com a bagunça que se viu nos últimos dias. Pode haver momentos em que o Congresso supra essa lacuna; no entanto sua própria condição de casa ultrafragmentada impõe limites a esse desempenho.

Os riscos do prolongamento desse statu quo não deveriam ser exagerados. As balizas do regime têm sido bem defendidas e não há sinal visível de que serão atingidas.

Mas há razão para temer pelo travamento da capacidade do país de lidar com desafios gigantescos na área social e na economia. A marcha atual conduz à instabilidade e ao impasse. Que seja descontinuada uma vez findo o Carnaval.

JORGE RORIZ