Impedimento, já!

Marcelo Uchoa
Advogado e professor de Direito

Não é de hoje que o presidente Jair Bolsonaro vem atentando contra a Constituição em seus princípios fundamentais de proteção à dignidade da pessoa e, naturalmente, contra o decoro exigido ao honroso cargo que ocupa no país. Seu comportamento sabidamente descontrolado, com traços indubitavelmente psicopáticos têm trazido ao país um desconforto internacional, que não apenas lhe prejudica enquanto nação, mas a todos danam, à medida que enlameia o cenário nacional numa perspectiva de incertezas que só pode resultar em prejuízos econômicos gerais e individuais. O fato, porém, de não haver sido interditado mentalmente lá atrás lhe permitiu, por razões múltiplas que não merecem ser destacadas aqui, a galgar postos políticos de relevância e a chegar ao comando da nação. Essa fatídica consequência, por mais que possa não lhe pareça crível (afinal, ao que parece, o presidente se imagina onipotente), não lhe dá salvo-conduto para continuar agindo como se não tivesse responsabilidades com a República.

Ontem, 20/12, num de seus constantes atritos com a imprensa, questionado sobre fundadas dúvidas acerca de supostas ligações espúrias envolvendo um de seus filhos com um conhecido chefe miliciano, o presidente reagiu com a seguinte frase ao jornalista: “Você tem uma cara de homossexual terrível, nem por isso eu te acuso de ser homossexual. Se bem que não é crime ser homossexual”. Noutra oportunidade, retrucou: “Oh rapaz, pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai, tá certo?”. A quem interessar, vídeos com tais falas estão amplamente divulgadas em matérias na internet.

Pois bem, o que importa para o presente texto não é aferir se o presidente é ou não insano, age ou não como mau-caráter, o objetivo desta reflexão é analisar a reação do presidente Jair Bolsonaro à luz da legislação brasileira. O art. 3º da Constituição Federal expressa que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. O art. 5º, por sua vez, diz no caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”. No afã de concretizar tais comandos constitucionais e criminalizar as citadas discriminações por motivos de afronta à dignidade das pessoas o legislador aprovou, em 1989. a Lei n. 7.716, cujo art. 1º estabelecia taxativamente “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça ou de cor”. Mais adiante, tal dispositivo foi alterado pela Lei n. 9.459/97 para esclarecer que a imperatividade do comando deveria estender-se a discriminações por motivos de etnia, religião ou procedência nacional. A redação do art. 1º da Lei 7.716/89 passou a ser: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Injustificadamente, a homofobia e a transfobia não foram incluídas na alteração legal, contudo, diante de uma mora absolutamente injustificada, o Supremo Tribunal Federal do país, reconheceu, em 13 de junho deste ano de 2019, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, que a demora da atividade legislativa na criminalização de condutas homofóbicas e transfóbicas prejudicaria a atenção aos direitos fundamentais da comunidade LGBTQ. Com efeito, decidiu o STF que até que o Congresso Nacional promulgue lei específica sobre o tema, condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, devem se enquadrar nos crimes previstos para o racismo, isto é, segundo as disposições da Lei n. 7.716/89 (que, apenas a título de informe, prevê para a hipótese de discriminação pena de reclusão de dois a cinco anos) e, no caso de homicídio doloso, constituindo circunstância que o qualifique como torpe. Isso porque o racismo transcende a circunstâncias meramente biológicas e de fenótipos específicos, agredindo a dignidade de quem quer que integre grupo social considerado vulnerável. Ressalte-se que, para a Constituição, crimes da espécie são considerados inafiançáveis e imprescritíveis por interpretação comparada do racismo na inteligência do art. 5º, XLII, da Constituição: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;”.

Nesse sentido, sendo compreendido que o presidente da República, no destempero das declarações proferidas ontem, agiu de maneira homofóbica e transfóbica, deve ser levado a responder pelas ações penais específicas. E não apenas isso. A Constituição, em seu art. 85, estabelece que “são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (V) a probidade na administração”. Já a Lei n. 1.079/50, que trata dos crimes de responsabilidade do Presidente da República e Ministros de Estado, estipula no art. 9 que “são crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

7- proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Portanto, em se considerando não haver agido o presidente de modo compatível com a dignidade do cargo que ocupa ele também terá cometido crime de responsabilidade, o que lhe resultaria a necessidade de abertura imediata de um processo impeachment na Câmara dos Deputados. Afinal, a Constituição também prevê, quando trata da responsabilidade do Presidente da República (Seção III, do Capítulo II, sobre O Poder Executivo): “Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”.

Espera-se, portanto, que a Câmara dos Deputados, consciente de sua responsabilidade cívica, não silencie diante dos graves fatos acontecidos ontem, pois, sem dúvida alguma, merecem apreciação e devido julgamento, lembrando-se que, a rigor, a Câmara sequer pode escusar-se de analisar tal episódio, afinal, também é norma imperativa, segundo o Código de Ética e Decoro Parlamentar da

Câmara dos Deputados de 2002 (Resolução no 25, de 2001), a obrigatoriedade categórica de cumprimento do art. 3º, sobre os deveres fundamentais dos deputados, de “II respeitar e cumprir a Constituição, as leis e as normas internas da Casa e do Congresso Nacional”. Por isso, impedimento, já!

JORGE RORIZ