Tweet Compartilhar no Google+
Publicado: 15/05/2018 17h41,
Última modificação: 15/05/2018 17h41
Por Elisabetta Recine*

A lógica industrial de produção da comida, que deveria alimentar nosso corpo e garantir nossa saúde, levou o Brasil a merecer o “título” nada honroso de “campeão” mundial em uso de agrotóxicos. Esses produtos – na verdade, venenos – são usados para eliminar espécies não consideradas desejáveis pelo grande produtos e, assim, aumentar a produtividade das lavouras. Eles já possuem isenções fiscais e outras concessões feitas pelo Estado. Agora, estão prestes a colher benefícios ainda mais generosos, caso seja aprovado o Projeto de Lei (PL) Nº 6.299/2002, em tramitação na Câmara dos Deputados, que “afrouxa” a atual legislação.

Trata-se de um pacote de medidas que representará grandes retrocessos. A proposta retira poderes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e concede ao Ministério da Agricultura a competência para a liberação dos agrotóxicos. O PL Nº 6.299/2002 também propõe a flexibilização do controle do Estado em relação ao uso de agrotóxicos, infringindo acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Além disso, o texto retira a competência de estados e municípios para elaborar leis mais específicas e restritivas, ferindo o pacto federativo nacional, e cria o Registro Especial Temporário (RET) e a Autorização Temporária (AT) para qualquer agrotóxico que tenha sido aprovado em pelo menos três países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), contrariando o princípio da precaução – imprescindível para produtos e processos que acarretem risco potencial às pessoas e ao meio ambiente.

O PL propõe ainda a mudança na denominação dessas substâncias, que deixariam de ser chamadas de agrotóxicos, palavra que seria depreciativa, e passariam a ser chamadas por uma expressão eufemística — “produtos fitossanitários” ou “produtos de controle ambiental”, uma óbvia tentativa de dissimular os riscos, cada vez mais evidentes, que eles representam à segurança alimentar e nutricional, à saúde da população e ao meio ambiente.

A luta pela comida de verdade, não industrializada, sem veneno, é uma das bandeiras do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Defendemos a proibição de todos os agrotóxicos banidos em outros países e que ainda são usados no Brasil. O glifosato, por exemplo, já proibido em diversos países, circula livremente e é intensivamente utilizado no território nacional.

Defendemos, ainda, a aprovação do Projeto de Lei 6670/2016, apresentado na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, que cria a Política Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos (PNaRA). Apresentado na comissão pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o texto foi construído por entidades da sociedade civil e estabelece medidas de controle no uso destes produtos no país. Esse projeto é exatamente um contraponto ao que está em votação agora e prevê a transição progressiva do atual modelo de produção para sistemas baseados na agroecologia.

Atento às investidas de setores produtivos que privilegiam o lucro acima e apesar de tudo, sem preocupação com a saúde e o meio ambiente, o Consea tem feito recomendações a representantes dos poderes constituídos, chamando a atenção para os impactos provocados por esses compostos químicos que adoecem todo o sistema alimentar, desde o camponês até o consumidor final nas grandes cidades.

Neste sentido, o Consea, um conselho formado em dois terços por representantes da sociedade civil, apoia a mobilização que vem sendo feita por centenas de organizações sociais, que assinaram um manifesto púbico contra a aprovação do chamado “PL do Veneno”. Senhores e senhoras deputados e deputadas, senadores e senadoras, nós não queremos comer mais veneno, queremos alimentação adequada e saudável, livre de agrotóxicos e transgênicos.

Estima-se que hoje cada brasileiro consome uma média de sete litros de agrotóxicos por ano, dado que tem relação direta com as 70 mil intoxicações agudas e crônicas no nosso país, segundo dados de um dossiê elaborado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a Abrasco. O Ministério da Saúde alerta que, para cada evento de intoxicação por agrotóxico notificado, há outros 50 não comunicados. Existem inúmeras evidências do impacto dos agrotóxicos tanto na saúde pública como no meio ambiente. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) indicou a relação direta entre o uso de agrotóxicos e diferentes tipos de câncer.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou nota na qual se posiciona contra a aprovação do PL 6299. Para a Fiocruz, “a regulação de agrotóxicos não pode ser tratada de forma simplista, com a proposição de mudanças voltadas para atender aos interesses do mercado”.

Na verdade, o modelo adotado pela agricultura industrial brasileira é baseado no uso intensivo de recursos naturais, sementes transgênicas e de agrotóxicos. Os grandes produtores são completamente dependentes deste modelo, mas a população brasileira não o precisa ser.

Existem, sim, alternativas de produção de alimentos adequados e saudáveis para toda a população. O que precisamos é ampliar o apoio a formas sustentáveis de agricultura que respeitam a biodiversidade, fortalecer os programas de assistência técnica que dão suporte à transição agroecológica e garantir o acesso à terra e ao território para produção de alimentos.

O setor ruralista alega que estas ações impactam no custo dos alimentos. Aqui fica a pergunta: quem de fato paga esta conta? A saúde pública, as gerações atuais e futuras, o meio ambiente? A agricultura familiar, as camponesas e os camponeses brasileiros produzem não apenas os alimentos que chegam nos nossos pratos, mas são também responsáveis por uma economia local sustentável. Não faltam evidências científicas, apelos de instituições competentes e organizações científicas e da sociedade civil contra este PL. Sua aprovação é uma violação clara aos direitos à saúde e à alimentação adequada e saudável. Basta de veneno, queremos comer comida de verdade!

* Elisabetta Recine é presidenta do Consea, professora da Universidade de Brasília (UNB) e pesquisadora.

FONTE: CONSEA

Edit
JORGE RORIZ