O manifesto dos “504 Guardiões da Nação”: novo ataque à Constituição

Em meio a grave crise sanitária que o Brasil vive cuja péssima gestão do Governo militar desponta para indicação como a pior do mundo, e já alcançando a assustadora cifra oficial de 50 mil mortos, tendendo a que futuros estudos apontem que teremos aqui um resultado que superará o de mortos em diversas guerras mundo afora, como o caso das baixas norte-americanas no Vietnã, eis que, sob esta realidade somada a uma crise sem precedentes imposta severamente por um modelo político de completa submissão aos interesses dos Estados Unidos da América do Norte, tanto no plano de política interna quanto externa, eis que neste dia 18 de junho de 2020 o Brasil tem o desprazer de ser apresentado a um novo manifesto dos auto-intitulados “504 Guardiões da Nação” cujo tom é de expressar enérgico repúdio aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que mal disfarça o seu impulso golpista.

O manifesto é firmado por altas patentes militares das três Armas e também por alguns quadros civis, fato lamentável em face do dever funcional de evitar a intromissão nos assuntos políticos, sobretudo em política partidária e a ataques às instituições e aos três poderes, lição que lamentavelmente tantos generais, coronéis e brigadeiros signatários do manifesto não põem em prática, pois é indubitável que dela tem perfeita ciência.

O manifesto é aberto com tom absolutamente descolado dos princípios de um Estado democrático de direito pautado pela Constituição, pois os seus signatários ao apresentar-se como militares e civis avocam a condição de “[…] representantes da sociedade brasileira, verdadeiros destinatários e guardiões da Constituição Federal […]”. Nem 504 indivíduos representam os restantes 210 milhões como tampouco são “verdadeiros” qualquer coisa, nem “destinatários” nem “guardiões”, pois a primeira posição lhe toca a integralidade do povo brasileiro e a segunda, por designação constitucional, é competência do STF. Jogo de palavras que servem para embaralhar a sua audiência confusa em tempos de tempestade. Definitivamente, as altas patentes militares não deveriam firmar nada com este tom, posto que não lhes falta a dimensão do papel institucional e o real sentido de seu dever funcional.

Os signatários do manifesto reclamam o sentimento de “indignação” que, supõe-se pelo tom, seja profunda. Apontam para “[…] rumos ameaçadores que se descortinam para a Nação, fruto da escalada irracional de manobras pouco republicanas […]”, sendo acertada a descrição do estado de coisas, mas equivocados quanto aos seus reais causadores, que em algum caso confundem-se com o nome de signatários do próprio manifesto, posto que declarações cotidianas que apontam para golpes de Estado configuram exatamente a escalada da irracionalidade e do antirepublicanismo.

O que está em causa e parece motivar os signatários do manifesto é decisão do STF quase por unanimidade de que o inquérito das Fake News tenha continuidade. As forças resistentes às investigações têm perfeita ciência do seu potencial para atingir a prática de diversos ilícitos praticados com consequências potencialmente sérias para os atuais ocupantes do poder. A insatisfação foi expressa pelos signatários do texto ao fazer referência a suposta restrição que o STF pretende impor ao “único meio gratuito e democrático de que dispomos, as redes sociais”, desprezando o princípio elementar de que nenhum direito é absoluto, e tampouco a liberdade de expressão, mormente nas redes sociais em que têm sido realizados genuínos ataques destinados a destruir personalidades e ideologias financiados por bilionários. Subterrânea e não declarada é a insatisfação deste restrito grupo com que a lei seja aplicada e as investigações sobre possíveis crimes tenha lugar e atinja a todos identificados como transgressores.

A elite brasileira não pode encontrar paz, sossego e resignação a que lhes seja aplicada a máxima tantas vezes anunciada de que a “lei é para todos”. Arrogantemente manipula a retórica para mobilizar conceitos e artigos constitucionais para proclamar a emanação popular do poder enquanto o pequeno grupo serve apenas à alta elite nacional e transnacional. Esta é a real posição da elite brasileira, a ambicionar que a lei lhe preste serviços, como se não se tratasse de um princípio legal regulador em igualdade de condições para todos. É notável a este respeito que os signatários do manifesto divisam nos processos judiciais que eventualmente lhes tenham como alvo uma tentativa da “[…] cassação da chapa presidencial vencedora, produzidas por casuísmos e entendimentos contraditórios à segurança das garantias institucionais e dos direitos humanos […]”, estranhamento que não poderia ser maior quando acumulam-se as razões para investigação tal como não ocorria no momento do golpe de Estado perpetrado contra a Presidente Dilma Rousseff e os seus 55 milhões de votantes, momento em que estes alegados 504 guardiães da Nação brasileira permaneceram absolutamente calados ou, quem sabe, articulando o golpe de Estado que conduziria ao poder alguns dos signatários do presente manifesto. O que os redatores deste manifesto não desejam enxergar é que a cassação da chapa presidencial vencedora não é o real problema, mas tão somente a identificação sobre a existência de razões jurídicas ou não para fazê-lo, ou é que os signatários do manifesto que apresentam como seu o suposto projeto do Presidente da República de encetar a “[…] recuperação econômica e moral do Brasil” pretendem, paralelamente, interditar a investigação de crimes eleitorais e até mesmo homicídios?

A este grupo de 504 signatários não lhes ocorre defender a Nação da qual se arvoram defensores, sequer esboçando ou meramente apontando para a necessidade imediata do Governo militar brasileiro a nomear um Ministro da Saúde e a elaboração urgente de plano para diminuir os danos em vias de potencialização em face das políticas até aqui adotadas e que se distanciam da cientificidade. O manifesto dos auto-intitulados “504 Guardiões da Nação” despreza olimpicamente as quase 50 mil mortes de brasileiros e brasileiras, nem sequer uma menção, para concentrar baterias em críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) tentando de algum modo coagi-lo e, institucionalmente ou não, forçá-lo a abrir mão do pleno exercício de suas prerrogativas e competências constitucionais de interpretar, aplicar e fazer cumprir o texto constitucional.

Uma democracia pulsante não delega a guarda da nação a um pequeno e bem delimitado grupo, e se é certo que garante a liberdade de expressão a todos, até mesmo para manifestar “enérgico repúdio” a quaisquer decisões que não lhes interesse ou deixe de convir, por outro lado, em uma democracia o ataque concebido por parte de militares é, em sua raiz, um disparate relativamente aos princípios que orienta esta nobre carreira. Não lhes cabe dirigir-se aos poderes civis para falsear a verdade sem aduzir provas quanto a que sejam indivíduos inescrupulosos atuando em grupos e que alcançam posições de poder em face de “conveniência ou nepotismo”. Rigorosamente, não lhes cabe nem estão legitimados a emitir avaliações políticas depreciativas do Poder Legislativo, que encarna o poder político do povo brasileiro, quando mais não seja devido ao fato de que as armas não representam opção e nem estão constitucionalmente legitimadas a apresentar uma. O silêncio hoje rompido mais uma vez é, definitivamente, a sua melhor companhia.

As críticas realizadas por restritos grupos auto-proclamados virtuosos em detrimento do povo ao que juraram servir transcendem com sobras a fronteira do lamentável e adentram no pantanoso território da armadilha autoritária. Não detém, portanto, legitimidade política aqueles a quem as armas foram confiadas mas vêm à público luzindo-as em tom ameaçador, mesmo quando o fazem embrulhadas em um complexo e pouco afinado conjunto de palavras mal encaixadas e conceitos distorcidos que desgasta e oprime a quem deveria fortalecer e animar.

No caso do presente manifesto é indispensável considerar que o grupo auto-intulado de “504 guardiões” não pode ocupar tal posição de legítimo guarda, muito menos de uma nação tão complexa e plural como a brasileira. A arrogância de sua elite é espelhada em suas pretensões supostamente redentoras, mas logo traduzidas pela declaração de amor irretorquível às prebendas que os milhares de cargos da administração pública podem oferecer. É nesta esquina pouco animadora dos labirintos da vida política em que as atormentadas almas deparam com o vil metal que a virtude se esfuma e os alegados ideais mostram a sua verdadeira natureza e a retórica perde-se nas brumas do tempo.

O manifesto dos 504 equivoca-se profundamente – pois de má-fé hesito crer que possa tratar-se – ao pretender que qualquer governo eleito, seja por quantos milhões de votos forem, recebe carta branca para realizar qualquer ato em atropelo às leis do país e, no limite, da própria Constituição. Em último termo é este o movimento de defesa do Presidente da República realizado pelo manifesto dos “504 Guardiões da Nação”. Apostam suas firmas sob a divisa tantas vezes ouvida em tempos de hipocrisia aliada ao crime de que o “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Efetivamente, não é crível quanto a sinceridade dos 504, posto que o Brasil foi posto de joelhos aos interesses norte-americanos adotando alinhamento automático em matéria de política e comércio internacional, mas também em temas de política interna, a ponto de o Governo brasileiro estar na iminência de nomear para trabalhar junto ao Ministro de Relações Exteriores personalidade ligada a Steve Bannon. É isto significa Brasil “acima de tudo”? E quanto ao “Deus acima de todos”, realmente, muito menos que dubitável, trata-se de uma impossibilidade lógica e ética que um regime que estimula a morte, flerta com a tortura, mantém-se indiferente à morte de cinco dezenas de milhares de brasileiros(as) e que arma a população ao tempo em que cria um clima de guerra possa, realmente, acreditar em qualquer versão da divindade que um ser humano já possa ter imaginado em algum recanto da face desta terra.

A elite e seus restritos grupos operacionais que vêm a público dispostos a falar em nome da sociedade avocam e violam a posição de cidadãos que realmente desprezam em seu íntimo. De forma demagógica falseiam assumir a defesa dos interesses dos ribeirinhos e dos povos indígenas que, em verdade, ambicionam destruir, assim como os interesses das minorias deste país plural e, sobretudo, os interesses da maioria dos indivíduos deste país composta por pretos e pretas. São estes os que majoritária e desproporcionalmente sofrem cotidianamente a ação da mão criminosa que aciona o cão das armas que lhes tira tantas vidas. Esta é, certamente, elite que assume a mentalidade e a postura dos mais inescrupulosos dentre os mais inescrupulosos dos velhacos senhores de engenho que a literatura tenha sido capaz de apresentar.

A acidez da crítica aos atores e às instituições deve encontrar um lastro firme e conexão com a realidade, mas a elite brasileira não mantém qualquer linha deste tipo com a esmagadora maioria da população, o que torna compreensível que manifestos eivados de elitismo e demofobia apresentem um escassíssimo grupo de indivíduos como os legítimos e “verdadeiros destinatários e guardiões da Constituição Federal”. Falsificação política superlativa, o manifesto expõe as ações do Poder Legislativo e do Poder Judiciário como “insuportáveis”, posto que inviabilizadores dos “planos do Poder Executivo destinados à recuperação econômica e moral do Brasil”, como se o Estado e a democracia brasileira não estivessem equipados com os instrumentos e perpassados pela lógica de funcionamento da coordenação e equilíbrio dos três poderes, sujeitos a tensões e sucessivos reequilíbrios, mas em nenhum caso pela lógica da supremacia de qualquer um deles, tampouco do Poder Executivo, o que configuraria o desenho de um modelo autoritário.

Almas atormentadas por pecados cruéis não dispõem de serenidade no presente não podem projetar o futuro dada a inclemência da reverberação do passado, e ao vestir coturnos que todavia guardem indeléveis e frescas manchas do precioso líquido vermelho ali vertido mantém acesa a memória do opróbrio. Almas atormentadas que admiram a violência guardam as armas no coldre ou improvisadamente no bolso do pijama, mas não votos, legitimidade e, sobretudo, o respeito popular, e por isto estarão sempre dispostas a desprezar, vilipendiar, desrespeitar e, finalmente, destruir os fundamentos da organização política erigida pelo esforço popular através de seus representantes e, se necessário, utilizando as armas para utilizá-las contra o seu próprio povo.

Não são guardiões da Nação os pequenos grupos como este que firma o manifesto, e nem lhes foi outorgada a competência para realizar a “recuperação econômica e moral do Brasil” tal como reclamam. O coletivo que se apresenta como “guardiões” não presta o serviço que deveria, a saber, proteger a soberania política popular expressa pelas urnas nos limites impostos pela Constituição. A estes limites estão expostos todos e quaisquer representantes políticos legitimamente eleitos, e quaisquer que seja o volume de votos que receba, permanecerão sob o estrito dever de submissão à ordem constitucional. A violação de qualquer dimensão de seu compromisso legal de submissão ao ordenamento jurídico que juram cumprir e fazer cumprir os conduzirá, inexoravelmente, a sujeitar-se ao devido processo legal segundo a lógica de operação de um Estado democrático de direito.

Este último manifesto gestado por militares com adesão de alguns civis é mais um lamentável equívoco que apenas vem a reforçar o anseio casado de esgarçar ao máximo as instituições e o conjunto dos poderes para, desconstruindo-os, colocar as condições de possibilidade para a sobrevivência tão somente do Poder Executivo com alta concentração de poderes. O desejo implícito que percorre as linhas do manifesto e a projeção de suas consequências é da emersão de uma ditadura no Brasil, e não de governantes devidamente submetidos aos ditames constitucionais e à lógica da democracia. Estamos muito longe de poder deixar de repetir, uma e outra vez com Ulisses Guimarães que “Traidor da Constituição é traidor da Pátria”.

Roberto Bueno
Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

Publicado no site 247

JORGE RORIZ