O voto dos democratas em Lula é apenas um veto a Bolsonaro

por Augusto de Franco

Bolsonaro perdeu a eleição no primeiro turno. Mas o bolsonarismo ganhou. A despeito de toda “campanha do abafa” de artistas, intelectuais, desportistas, ricos e famosos influencers, grandes meios de comunicação – além dos mais pobres, concentrados em grande parte no Nordeste – para eliminar Bolsonaro no primeiro tempo, ele não só resistiu, mas elegeu, para todos os cargos em disputa, um número expressivo de seguidores e entra no segundo tempo, como se diz no Nordeste, “com gosto de gás”.

Bolsonaro, ao que tudo indica, perderá a eleição no segundo turno, mas o bolsonarismo continuará ameaçando (e erodindo) nossa democracia, em vários governos e parlamentos estaduais e no Congresso Nacional (que ficou mais reacionário), em extensas parcelas da população politicamente ativa (nas mídias, nas ruas e nas instituições) e na maioria das regiões do país, sobretudo nas pequenas e médias cidades do interior.

Isso não se resolve eleitoralmente, mas somente com a multiplicação do número de democratas na sociedade brasileira que rejeitem os populismos, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Como não existe democracia sem democratas e há um déficit de agentes democráticos na sociedade brasileira, a situação é mais complexa do que parece. Se não investirmos pesadamente na aprendizagem da democracia, não haverá solução. E as pessoas nem se darão conta de que estão sendo despolitizadas (no sentido original do termo, empregado pelos primeiros democratas) pela polarização entre dois populismos.

Por isso, não basta apenas rejeitar o populismo-autoritário bolsonarista. É necessário também rejeitar o neopopulismo lulopetista que criou as condições ideais para o crescimento em escala do bolsonarismo.

Sim, tudo isso tem uma razão. O comportamento do neopopulismo lulopetista irritou as pessoas num nível profundo, emocional. O PT quer que todo mundo se sinta culpado por não ser do PT ou de esquerda e tenha que pedir desculpas pela sua (suposta) falha moral. Isso gerou um sentimento de repulsa em extensas parcelas dos setores médios da sociedade. O “nós contra eles” – instalado na política pelo petismo – gerou um (monstruoso) “eles”.

Parece óbvio dizer, mas pouca gente constata o óbvio. Se não houvesse petismo não haveria antipetismo. O massivo voto em Bolsonaro e nos bolsonaristas no primeiro turno não aconteceu por acaso. Foi uma reação que eclodiu a partir de um acúmulo de insatisfações, no limite da suportabilidade, com um determinado comportamento político. É preciso entender por que o petismo irritou as pessoas deixando-as vulneráveis ao bolsonarismo. Para resumir:

√ o espírito militante patrulhador e a intolerância (com quem pensa diferente),

√ a condenação moral de quem não segue o partido,

√ a incapacidade de reconhecer os próprios erros,

√ o hegemonismo,

√ o tratamento instrumental dos aliados,

√ a contradição evidente de se dizer democrata, mas apoiar ditaduras,

√ o caráter i-liberal (ou não-liberal) do projeto petista e

√ a estratégia do neopopulismo lulopetista.

Bem… agora o que é possível fazer em termos eleitorais é tirar Bolsonaro da presidência.

Dessarte, é claro que, para impedir a reeleição de Bolsonaro, deve-se votar em Lula neste segundo turno. Mas isso não significa apoiar o PT ou o seu futuro governo.

Para os democratas liberais (não-populistas) seria possível, entretanto, apoiar o PT e até o seu quinto governo, desde que o partido aceitasse as seguintes condições:

1. Defesa da Constituição de 1988 e rejeição da tese de convocação de uma nova Constituinte.

2. Garantia da liberdade de imprensa com o abandono de sua velha proposta de controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação profissionais.

3. Garantia da lei e da ordem pelo que reza a Constituição, sem qualquer interferência na formação e promoção de oficiais, nem no papel constitucional das Forças Armadas.

4. Preservação da moeda e garantia das reformas de modernização do Estado promovidas na última década (incluindo as privatizações) e compromisso com as reformas futuras, com destaque para a tributária, a administrativa e a política (com o fim da reeleição e a reforma partidária).

5. Autocrítica de que o caminho trilhado pelo partido, de fazer “a revolução pela corrupção” (como cunhou o saudoso poeta Ferreira Gullar) – incluindo mensalão e petrolão –, foi incorreto e antidemocrático.

6. Renúncia à política externa ideológica do Sul Global, apoio à resistência ucraniana e condenação da invasão militar de Putin e apoio às sanções impostas à Rússia. Defesa da democracia liberal de Taiwan e condenação das ditaduras latinoamericanas de esquerda (como Cuba, Venezuela e Nicarágua) e africanas (como Angola). Despolitização do papel dos BRICs (dominado por autocracias como Rússia, China e Índia), não admitindo o seu uso para combater os supostos imperalismo norte-americano e expansionismo da OTAN.

7. Reconhecimento de que o impeachment foi um processo constitucional e não um golpe de Estado.

8. Defesa – com a mesma intensidade – de todos os seis critérios da legitimidade democrática: liberdade, eletividade, publicidade ou transparência, rotatividade ou alternância, legalidade e institucionalidade.

9. Compromisso de não aparelhar novamente o Estado com militantes petistas. E de não tentar reinstituir a participação assembleísta e conselhista, arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de-transmissão do partido, para subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado.

10. Proclamação de que vai abandonar sua estratégia de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido com o objetivo de se delongar do governo (falsificando o critério da rotatividade democrática).

Que fique claro que as condições elencadas acima são apenas para apoiar o PT e seu quinto governo, não para votar em Lula. A questão para os democratas é simples. Bolsonaro não pode ser reeleito. É um imperativo democrático. Logo, é necessário votar em Lula se houver risco de reeleição de Bolsonaro. Há risco? Há. Então votamos em Lula. Ponto.

Mas que fique claro também que, uma vez que não há democracia sem oposição democrática, o Brasil precisa de uma oposição democrática (não-populista). Em 2023, não apenas em 2026. O que significa que os democratas não-populistas, tendo votado em Lula para vetar a continuidade de Bolsonaro na presidência, vão começar a articular uma oposição ao seu governo. Uma oposição diferente daquela que será feita pelo bolsonarismo, que será antidemocrática.

Assim, os democratas não-populistas devem votar em Lula para evitar a reeleição de Bolsonaro, mas não devem se deixar capturar pelo neopopulismo lulopetista (nem, por exemplo, aceitar cargos num futuro ministério petista). Têm que se articular para constituir um polo democrático de oposição ao novo governo. Até porque, se não fizeram isso, correrão o risco de ser defenestrados da cena pública.

JORGE RORIZ