PGR ignorou pedidos de diligências para apurar atos antidemocráticos

A Rede Globo teve acesso ao relatório parcial em que a Polícia Federal pede novas diligências à Procuradoria Geral da República no inquérito dos atos antidemocráticos. A Polícia Federal afirma que encontrou indícios de que apoiadores e parlamentares bolsonaristas discutiram ações para a propagação de discursos de ódio e a favor do rompimento institucional. Mas a PGR não concordou com as novas investigações e nesta sexta-feira (4), depois de cinco meses, pediu o arquivamento sem fazer nenhuma nova diligência.

A Procuradoria Geral da República pediu o arquivamento do caso, que envolve pessoas com foro privilegiado, no Supremo Tribunal Federal. E recomendou que seis investigações contra quem não tem prerrogativa sigam em instâncias inferiores.

Um despacho mostra que o ministro Alexandre de Moraes enviou o relatório parcial da Polícia Federal para a PGR se manifestar no dia 4 de janeiro. A resposta da Procuradoria levou cinco meses, e não foram feitas diligências.

A PGR afirmou ao Jornal Nacional que recebeu o inquérito em fevereiro. Mas este documento mostra que o relatório parcial foi recebido pela Procuradoria no dia 5 de janeiro. A PGR diz também que fez uma auditagem da investigação realizada pela PF, mas não afirma que fez diligências.

A principal crítica da Procuradoria para pedir o arquivamento foi que a Polícia Federal não teria aprofundado as investigações. Não teria seguido, por exemplo, o rastro do dinheiro para organizar e financiar os atos, e que depois de mais de um ano de inquérito, não há mais prazo razoável para a PF aprofundar a apuração.

Mas no relatório da Polícia Federal, os investigadores propõem aprofundar as investigações. Entre os pedidos, está a ampliação da apuração sobre o blogueiro Allan dos Santos, um dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro, com forte influência e próximo a deputados que lideram a chamada base ideológica do governo.

A Polícia Federal identificou a articulação e a atuação de integrantes do grupo para evitar uma convocação da CPI das Fake News de um sócio de Allan dos Santos.

Em um grupo de aplicativo de mensagens, integrantes do grupo tentaram convencer a deputada federal Bia Kicis a derrubar a convocação e subsequente oitiva de João Bernardo Barbosa, que na verdade é sócio e pessoa que paga contas de Allan dos Santos. E que fosse realizada pela CPMI, impedindo que a comissão avançasse no entendimento dos fatos.

A PF fez uma série de cruzamento de dados e mostra a relação de empresários, políticos e apoiadores do governo. Uma das linhas de investigação é saber se houve o direcionamento de repasse de dinheiro do governo federal para sites e outros canais bolsonaristas atacarem as instituições.

Há um pedido para investigar os repasses para a Inclutech Tecnologia, de Sérgio Lima. A empresa dele ficou responsável pela marca do partido que Bolsonaro pretendia criar o Aliança Pelo Brasil, e recebeu R$ 1,7 milhão. A empresa também recebeu valores da cota parlamentar de deputados bolsonaristas do PSL.

Foram identificados repasses dos parlamentares Aline Sleutjes, Elieser Girão, José Negrão Peixoto e Bia Kicis que somam o valor de R$ 30,3 mil. De acordo com Sérgio, tais valores estariam relacionados a prestação de serviço de desenvolvimento de redes sociais de tais parlamentares.

Ainda não há conclusão se os recursos impulsionaram a divulgação de atos antidemocráticos. A PGR defendeu que esse caso vá para a primeira instância, alegando que não haveria suspeitas sobre pessoas com foro.

A Polícia Federal também apreendeu uma planilha indicando valores recebidos de servidores públicos pelo canal do blogueiro Allan dos Santos. Entre eles, um repasse de R$ 70 mil feito por uma servidora do BNDES para um dos sócios de Allan. Entre abril e maio do ano passado, auge dos atos antidemocráticos, ocorreram quase 650 transações sem identificação de CPF.

A quantidade de doações, o valor repassado por servidores públicos, a forma do repasse, a preocupação demonstrada pelas pessoas quanto à exigência de identificação de CPF indica a necessidade de compreender os fatos e circunstâncias.

A PF também propôs aprofundar as investigações sobre a existência de um braço estrangeiro para financiar os atos antidemocráticos. O elo seria o empresário João Bernardo Barbosa, que mora em Miami, sócio de Allan dos Santos, segundo a PF.

Investigadores dizem que há possibilidade de valores terem sido enviados ao exterior para o recebimento de recursos da chamada monetização, pagamentos feitos a páginas bolsonaristas. A PF afirma que há um pedido de cooperação internacional à Justiça do Canadá para que envie ao Brasil dados sobre os fatos.

Outra linha de investigação trata da possibilidade de uma “rachadinha” ter financiado uma rede de ódio. A “rachadinha” é a prática de o parlamentar ficar com parte do salário dos servidores do gabinete. A PF afirma que a deputada Aline Sleutjes, do PSL, recebeu diversos depósitos em suas contas bancárias feitos por funcionários de seu gabinete. Os investigadores avaliam que é preciso aprofundar o caso. À PF, a deputada afirmou que os valores são legais e são referentes, por exemplo, a quitação de um empréstimo feito a seu auxiliar.

No relatório, a PF também mostra as relações do blogueiro Allan dos Santos com o deputado Eduardo Bolsonaro. Os dois combinaram, na internet, um movimento que pedia a saída do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do Democratas.

No dia 17 de abril do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro e Allan dos Santos conversam sobre a hashtag #foramaia. Na mesma ocasião, Allan dos Santos chama o deputado federal Carlos Jordy, do PSL, para participar ao vivo da transmissão pelo Youtube. Após Jordy perguntar sobre o que seria, Allan afirma: “Bater no Maia”.

A Polícia Federal utilizou uma investigação da empresa Atlantic Council, uma organização que tem uma parceria com o Facebook, para analisar grupos responsáveis por disseminar desinformações em eleições democráticas. Essa investigação tirou contas e perfis ligados à família Bolsonaro.

A polícia obteve dados externos para checar a consistência dessa investigação. Foram identificados dois acessos de Eduardo Bolsonaro a uma das contas. A PF, no entanto, afirma que o cenário é provisório por causa de pendências em dados de órgãos públicos, entre eles, a Presidência da República e o Senado. A PF não conseguiu acessar os dados que recebeu desses órgãos. Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, é senador do Patriota.

E faltou informação da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Foi comunicado que tal instituição não possui arquitetura de registro de logs de acesso à internet. Logo, não teriam como fornecer dados que pudessem individualizar os usuários da internet no ambiente do mencionado órgão público.

Carlos Bolsonaro, também filho do presidente da República, é vereador no Rio pelo Republicanos. Ele prestou depoimento à PF como testemunha e negou produzir conteúdo para incentivar atos antidemocráticos.

Em outra frente, a PF defende uma apuração de possíveis conexões de Allan dos Santos com a comunicação do governo federal, e cita um bilhete encontrado na casa do blogueiro que expõe as seguintes ideias: “Objetivo: materializar a ira popular contra os governadores/prefeitos; fim intermediário: saiam às ruas; e fim último: derrubar os governadores/prefeitos, convergentes com o escopo do presente inquérito policial”.

Segundo a PF, esses objetivos antidemocráticos externados em manuscritos apreendidos na residência de Allan dos santos têm de ser interpretados em conjunto com o interesse demonstrado e ratificado nos relatórios em análise em obter espaço junto à área de comunicação do governo federal.

Os investigadores citam ainda que no ano passado Allan dos Santos enviou mensagens ao tenente-coronel Mauro Cesar Cid, ajudante de ordens do presidente, tentando influenciar e provocar o rompimento institucional com atos que foram realizados entre abril e maio do ano passado. Allan defendeu a intervenção militar alegando não ver solução pela via democrática. Ele citou decisões do Supremo e finalizou dizendo que “não dá mais”.

Uma troca de mensagens aparece no depoimento de Mauro Cesar Cid à PF. O blogueiro diz: “As Forças Armadas precisam entrar urgentemente.”

O inquérito para investigar os atos antidemocráticos foi aberto no ano passado a pedido da PGR e autorizado pelo ministro Alexandre de Moraes.

Em abril de 2020 foram realizadas manifestações antidemocráticas, com ataques ao STF e ao Congresso Nacional e a favor da reedição do AI-5, o ato mais duro da ditadura militar. O próprio presidente Jair Bolsonaro discursou em um dos protestos, em frente ao quartel-general do Exército em Brasília. Bolsonaro, no entanto, não foi investigado.

Durante as investigações, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão, prendeu manifestantes e quebrou o sigilo de um senador e de dez deputados — a maioria do PSL, como Daniel Silveira, Carla Zambelli e Bia Kicis, atual presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.

A deputada Alê Silva fez uma publicação no dia 19 de abril do ano passado, em que escreveu: “AI-5 e intervenção militar é o grito de desespero de um povo que quer ver o seu presidente, eleito democraticamente, governar sem as amarras de dois congressistas”. À PF, a deputada disse que ninguém queria intervenção militar e usou o AI-5 como metáfora.

O pedido de arquivamento das investigações foi assinado pelo vice-procurador geral, Humberto Jaques de Medeiros, e não pelo procurador-geral, Augusto Aras. O ministro Alexandre de Moraes ainda vai analisar o pedido e o material produzido pela Polícia Federal.

A deputada Carla Zambelli afirmou que o posicionamento da PGR é coerente com a liberdade e a verdade. E que não financiou nenhum movimento, muito menos, segundo ela, atos ditos antidemocráticos.

O Jornal Nacional não conseguiu contato com os outros citados.

E na noite desta sexta-feira (4), a PGR se manifestou a favor de que o deputado Daniel Silveira, do PSL do Rio, que é réu no inquérito dos atos antidemocráticos, volte para a prisão por violação no uso da tornozeleira eletrônica. Ele foi preso em fevereiro por ataques aos ministros do STF, e desde o meio de março está em regime domiciliar. A decisão cabe ao ministro Alexandre de Moraes. Ele não tem prazo para se manifestar.

FONTE: JORNAL NACIONAL

JORGE RORIZ