Supremo, ainda que estreito

HELDER CALDEIRA

Escritor e Jornalista Político

www.heldercaldeira.com.br – helder@heldercaldeira.com.br

*Autor dos livros “Águas Turvas” (Quatro Cantos, 2014) e “A 1ª Presidenta” (Faces, 2011), entre outras obras.

Os onze ministros do Supremo Tribunal Federal são passarinhos que vivem a comer pedras, no mais obsceno e nauseabundo sentido do rifão popular. Em simplória acepção, o poder máximo do STF reside exatamente no fato de ser impossível antever qual será sua decisão, desde que resguardada a qualidade de seus atores. É justamente a qualificação das togas que foi colocada em xeque em 2015, em especial na última sessão, quando o vernáculo figadal de Suas Excelências serviu ao malabarismo retórico para rasgar a Constituição e a jurisprudência, enaltecer a insegurança jurídica do país e lançar a instância máxima do Poder Judiciário no lamaçal que abunda a República Federativa do Brasil.

Protagonistas do cumulonimbus jurisdicional, dois ministros novatos na Corte, não por acaso indicados pela presidente Dilma Rousseff, notória inapta nos processos de escolha e decisão. O primeiro, calouro das togas, com mais de 100 páginas de defesa à independência dos Poderes republicanos e preservação da institucionalidade democrática. De outro lado, uma espécie de linha auxiliar ao petismo palaciano — curiosamente seguido pela maioria do místico plenário de capas-pretas — e o desejo incontido de rever, reler e retaliar a História do Brasil numa interpretação sui generis de fatos e atos que, mesmo frequentemente estimulados à morte, ainda repousam à memória falha e seletiva do povo brasileiro.

Salta aos olhos a pobreza nas discussões da atual composição plenária do STF. A estreiteza de conhecimento de alguns ministros beira a grota carnavalesco-circense de nossa cultura. “Mas, o que é realmente preocupante é a dificuldade que eles têm com uma História tão próxima, de 1992. […] Eles fizeram um histórico que é um horror, um absurdo! O argumento deles é: ‘nós não estávamos aqui!’ Ora, eu também não estava na Roma Antiga, mas posso falar sobre a crise da República Romana; eu também não combati na Primeira Guerra Mundial para conseguir falar sobre ela! Uma pobreza absoluta! O ministro [Luís Roberto] Barroso, então, com sua canequinha branca e seu desconhecimento de Brasil, é uma das coisas mais assustadoras, fingindo ser um gênio da raça quando não passa de um Pacheco do Eça de Queiroz!”, disse com galhardia e brilhantismo o escritor e professor Marco Antônio Villa, historiador doutor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em sua semanal entrevista ao portal da revista Veja, com a propriedade de quem acaba de estudar minuciosamente toda vasta documentação oficial sobre o impeachment de Fernando Collor de Mello para sua nova obra literária.

Contrariando a principal decisão do Supremo Tribunal Federal — que deveria ser seu maior e último guardião — naquela fatídica quinta-feira, 16 de dezembro de 2015, a Constituição Brasileira de 1988 expressa no Artigo 86, com clareza meridiana, o rito de julgamento do chefe do Poder Executivo. Qual seja:

Art. 86 – Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal nos crimes de responsabilidade.

§1º – O Presidente da República ficará suspenso de suas funções por cento e oitenta dias:

I – nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;

II – nos crimes de responsabilidade, após instauração do processo pelo Senado Federal.

§2º – Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.

Em momento algum da Carta Magna está disposto que o Senado Federal pode ou não abrir o processo de impeachment se 342 dos 513 deputados federais aprovarem sua admissibilidade. Não há uma única linha que conceda à Mesa Diretora ou ao plenário do Senado o poder de admitir ou não a instauração da comissão processante que julgará o impedimento de Dilma Rousseff. Ao contrário, a Constituição faz questão de ordenar: “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, SERÁ ELE SUBMETIDO A JULGAMENTO […] perante o Senado Federal nos crimes de responsabilidade.” Resumindo a ópera: o poder de admitir é da Câmara e quem julga é o Senado. Simples assim. Constitucional assim.

No entanto, lambuzados pela alucinação de feira-livre institucional deste tempo petista, a maioria dos ministros do STF decidiu conceder ilegal poder ao Senado Federal para admitir ou não a acusação, desqualificando e reduzindo a pó o poder de representação da Câmara dos Deputados. Aliás, não bastasse a devassidão da atual legislatura, é exatamente esse olhar de desdenho um dos responsáveis pela crise de representatividade que assola o país e cria um abismo entre os cidadãos e os engravatados federais que, conforme compreensão do STF, não representam nada, não representam ninguém.

Como no Brasil atual tudo que está ruim tende a piorar — e muito! —, naquela tarde de vergonha plena, os togados decidiram proibir a candidatura de chapas avulsas, chancelando que a eleição só pode ter uma chapa, indicada pelos 26 líderes partidários. Trata-se de uma das mais retumbantes excrescências já exaradas pelo STF. Não bastasse o fato de consignar que 26 deputados federais são melhores e mais importantes que o conjunto de 513, como podem os ministros chamar de “eleição” um escrutínio com chapa única, um só candidato? Noutras palavras, lição que fique, tal modalidade não seria uma “eleição” e, sim, um “referendo”. Reiteremos Villa: são eles gênios da raça ou ilustres Pachecos?

Vale destacar a ferocíssima manifestação do ministro Gilmar Mendes, que fez lembrar aos seus pares a sombria jurisprudência que o STF estava a assinar, massacrando a História e alterando substancialmente o Regimento Interno de outro Poder: “Até no Regime Militar havia candidatura de chapas avulsas. Agora, alguns ministros dessa Corte querem cassá-las e entregar a decisão aos poderes oligárquicos que dominam os partidos políticos do Brasil. […]Nós estamos fazendo uma intervenção gravíssima. Vamos dar a cara a tapa! Vamos assumir isso! Estejamos atentos quanto à nossa responsabilidade histórica. […] Nós estamos ladeira abaixo!”

Na ânsia de exibir uma erudição que não têm, alguns ministros do STF revelaram ao Brasil sua absoluta estreiteza, real pobreza intelectual e, sobretudo, como é possível uma autoridade do mais alto calibre mentir, subverter a realidade e vilipendiar a História, aquela que foi, aquela que não foi e esta que estamos construindo. É a triste e humilhante constatação de um República assaltada e ideologicamente aparelhada, cuja origem trêfega reflete seus líderes atuais e a barbárie do lamaçal como instituto, como ordenamento precípuo, como método de gestão e até de hermenêutica constitucional. O Brasil está morto, afogado na lama. Inventemos outro país.

P.S.: Naquela tarde de quinta-feira, vários foram os momentos quando a câmera da TV Justiça trazia ao foco o ministro Luiz Edson Fachin com cara de calouro de universidade sendo vandalizado pelo trote dos colegas veteranos. Foram sucessivos elogios ao seu brilhante relatório — e foi brilhante mesmo! — para, em seguida, fazer uso abusivo de vênias para divergir do relator. Ora, se divergiam tanto do relatório, não poderiam considerá-lo tão brilhante assim, certo?! Corporativismo chulo? Hipocrisia? Acho que foi um pouco pior: os ministros do STF deixaram o novato Fachin como um marido traído. “Há um ritual onde os ministros querem dar um ar sério a momentos quando a Suprema Corte brasileira parece um botequim!”, concluiu o doutor Marco Antônio Villa.

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JORGE RORIZ